A Relação com Jung
Em 1954, Nise escreveu uma carta a C. G. Jung, enviando fotografias das pinturas produzidas no ateliê do Engenho de Dentro e levantando questões sobre a significação e a origem delas. A resposta do mestre foi imediata: as mandalas representavam o potencial autocurativo existente na psique, mobilizado espontaneamente como uma forma natural e não consciente de compensar a dissociação vivida pelos indivíduos que as desenhavam.
Depois do primeiro encontro memorável que teve com seu mestre em um congresso na Suíça, Nise voltou à Europa, onde estudou no Instituto C. G. Jung, em 1957, e depois novamente, em 1962. Após seu primeiro período no Instituto, retornando ao Brasil, formou o Grupo de Estudos
C. G. Jung. Escreveu, entre outros, o livro Jung: vida e obra, publicado pela primeira vez em 1968.
Mandalas
A força Autocurativa
Como interpretar essa aparente contradição – pessoas definidas como seres partidos (esquizo: cisão; phrenis: pensamento), produzindo, em grande quantidade, imagens circulares, símbolos universais da unidade, da integração e da totalidade do ser?
— NISE DA SILVEIRA
Inicialmente eu não acreditava que fossem mandalas. “Esquizofrênicos não podem fazer isso”, pensava ainda com preconceitos da psiquiatria tradicional. A gente não se livra disso facilmente. Eu relacionava mandalas à filosofia oriental, ao instrumento de contemplação, às formas perfeitas que servem para concentrar, arredondar a mente. No entanto, elas apareciam em desenhos de esquizofrênicos que, por definição, eram pessoas espatifadas!
— NISE DA SILVEIRA
Contos e Inconsciente
Os contos de fada são o relato simbólico da experiência acumulada sobre a vida, um produto do inconsciente coletivo. Eles possuem uma estrutura narrativa própria e as mesmas funções para personagens diferentes; estão repletos de símbolos que nos remetem aos arquétipos. Comparando os contos de fada com as operações alquímicas, é possível perceber que ambos indicam o caminho de transformação do indivíduo do estado de “pedra bruta” até atingir a união da consciência com o centro de si mesmo. Ou seja, atingir a individuação, a pedra filosofal dos alquimistas.
O Livro Vermelho de Jung
Talvez uma das publicações mais revolucionárias para a psicologia contemporânea, o Livro vermelho é uma jornada pelo mundo interior do próprio psicanalista suíço Carl Gustav Jung. Pode-se dizer que o livro contém duas camadas de texto, uma em que se leem as dúvidas, os sonhos, as premonições e as visões de Jung – seu inconsciente por escrito – e outra que representa a interpretação desse conteúdo. Jung começou a escrever o livro no início do século XX, num momento de bastante indecisão teórica, mas o guardou por anos num cofre na Suíça. O livro só foi publicado em 2009, quase 50 anos após a morte de seu autor.
O registro das experiências pessoais, à luz do desenvolvimento da ciência da época, colocaria Jung numa situação de herético, louco ou místico, e talvez por isso o psicanalista tenha decidido não publicar o livro em vida. No entanto, parece ter sido por meio deste que Jung desenvolveu seu processo de individuação, em direção à autorrealização.
Tiago Sant’Ana
O artista visual Tiago Sant’ana vem visitando ruínas de engenhos de açúcar no Recôncavo Baiano desde 2017. Suas ações concentram-se nas memórias de ancestralidades negras, transformando a energia de violência e extermínio destes espaços em pulsão de vida.
Tiago investiga a naturalização da mão de obra escravizada e suas performances funcionam como um dos processos da produção de açúcar, um “purgar, tornando límpidas muitas memórias que foram silenciadas por uma história oficial”.
O Engenho é aquilo que acontece dentro das nossas cabeças-almas, é a missão de construirmos performativamente um estranhamento da história única que nos foi contada.
Essa é uma frase de Tiago, mas poderia ter sido dita pela doutora Nise. Como ela, o artista baiano se vale da energia criativa e transformadora para gerar a esperança da renovação.
Fernando Diniz
Em busca do espaço cotidiano
A psicologia tradicional despreza o estudo das vivências do espaço. O mesmo homem que responde corretamente no consultório médico “sim, doutor, eu me chamo fulano de tal, estou no hospital de Engenho de Dentro”, poderá revelar no ateliê de pintura a vivência de situações espaciais completamente subvertidas.
Pouco antes de ser internado, [Fernando] tinha a impressão que, na rua, os edifícios inclinavam-se sobre ele. Como para esmagá-lo. Na sua pintura, objetos diversos acham-se muito próximos uns dos outros, sem espaço livre entre si. Desfilam em atropelo recordações da infância, conhecimentos escolares, imagens de experiências externas e internas, intrincadas umas às outras. […] Foi como vente acompanhar Fernando nos seus esforços para sair dessa condição opressora.
— NISE DA SILVEIRA
Dionisio
Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
— CHICO BUARQUE E FRANCIS HIME (1984)
Uma vez por ano, e só uma vez (por que só por uma vez?), deixamos passar pela avenida o Carnaval. A avenida da letra é simbólica, porque a catarse passa por becos, praças, vielas, casas, cidades, esquinas, e encontra-se fantasiada, alegre, banhada pela embriaguez da fantasia, por todo tipo de gente que, embalado por uma alegria fugaz e ofegante, permite-se simular a evolução da liberdade. O poeta diria que isso é que é a vida boa, passeando diante do estandarte do sanatório geral – que vai passar.
Por um dia, afinal,
tinha direito à alegria.
Talvez, Nise da Silveira quisesse também subverter a ideia do Carnaval pontual de cada ano. Talvez quisesse que fôssemos mais Carnaval todo dia. E talvez, afinal, pensasse que temos outra opção. Que se, talvez, quiséssemos, pudéssemos, devêssemos, precisássemos, poderíamos, como método, expressar afetos por toda nossa avenida – a vida –, que é existência e coexistência. Inaugurar uma nova forma de passar por cada paralelepípedo, lembrando-se dos pés que sangraram, dos nossos ancestrais, das páginas infelizes, mas em direção ao encontro regado pelo afeto e pela revolução instaurada por um modo de ver a vida que tem como premissa a beleza da individualidade e sua condição coletiva.
Sinto, logo percebo o outro. Só assim vai passar. Vai passar.
Liberdade, liberdade!
Abra as asas so nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz.
— NILTON TRISTEZA, PRETO JOIA, VICENTINHO E JURANDIR (1989)