Um atelier humano
A seção de terapêutica ocupacional
A lei primordial da criação é a atividade.
— HERMANN SIMON (1937)
Quando voltou ao serviço público e criou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação do hospital de Engenho de Dentro em 1946, o desafio da doutora Nise era consolidar a terapêutica ocupacional como um método legítimo, sem o rótulo de “mero passatempo” que essa técnica recebia naquele ambiente alinhado aos tratamentos emergentes na época. A terapia era indicada a pacientes encaminhados por psiquiatras de outros setores do hospital e a qualidade do que era produzido ali não deveria ser levada em conta.
As atividades podiam ser utilitárias (jardinagem, encadernação, costura, sapataria); expressivas (pintura, modelagem, música); recreativas (jogos, festas, cinema) ou culturais, ligadas ao ensino e ao estudo. Eram prescritas para favorecer a afirmação da individualidade e a liberdade de expressão ou proporcionar uma satisfação imediata, oferecendo meios para a sociabilidade.
Biblioteca
A biblioteca de Nise da Silveira ocupava a sala e os dois quartos do apartamento acima daquele onde morava. O apuro na seleção das centenas de livros contrastava com a simplicidade das estantes de tábuas de madeira, apoiadas em tijolos. Literatura, artes plásticas e filosofia dividiam espaço com recortes de jornais, catálogos de exposição, obras completas de Antonin Artaud, Machado de Assis, Freud e C. G. Jung, além de livros de medicina, epistemologia e religião e uma prateleira com livros sobre gatos.
De todas as prateleiras da seleta biblioteca, a mais importante é a que guarda os livros de correntes teóricas variadas, que tratam dos estudos sobre a expressão plástica, principalmente de pessoas que se encontram em tratamento psiquiátrico. Para facilitar o caminho a ser percorrido por (improvável) pesquisador, Nise da Silveira elaborou uma lista de livros comentados ao qual deu o seguinte título: “pequeno fichário relativo a obras sobre expressão plástica de psicóticos e algumas dicas para o benedito”. Este foi o campo de trabalho privilegiado por Nise da Silveira, e, sendo assim, perguntava-se: “Quem será o Benedito que vai se interessar por estes livros?”.
— TEXTO ADAPTADO, WALTER MELLO (2007)
O museu de imagens do inconsciente
Os ateliês de pintura e modelagem se destacaram em meio às outras atividades da Seção de Terapêutica Ocupacional. As obras ali produzidas constituíam um meio de acesso ao mundo interno dos pacientes e foram tão numerosas e importantes para o estudo científico dos processos psíquicos que, em 1952, a doutora Nise fundou o Museu de Imagens do Inconsciente.
O museu define-se como um centro vivo de estudo e pesquisa sobre os documentos plásticos produzidos ali diariamente. A pesquisa, de caráter interdisciplinar, envolve experiência clínica, psicologia, psiquiatria, antropologia cultural, história, arte e educação.
Com um acervo de mais de 350 mil obras e em constante crescimento, o museu tem a maior e mais diferenciada coleção do gênero no mundo, e suas principais obras são tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
O método e o favorecimento do processo de autocura
A doutora Nise apresenta uma nova concepção de loucura, não mais como rótulo, diagnóstico ou lista de sintomas, mas como uma experiência humana, um estado do ser.
Utilizando um método interdisciplinar aplicado às séries de imagens para extrair-lhes conteúdos significantes, que encontra forte fundamento na psicologia analítica de Jung, Nise nos trouxe conhecimentos cujos conteúdos são universalmente assimiláveis, ou seja, ultrapassou a fronteira do território médico, trazendo reflexões que dizem respeito ao interior da psique do ser humano enquanto espécie, como resultado de experiências.
Não se trata de fazer arte, diz Jung, mas de produzir um efeito sobre si próprio. Aquele que até então permanecia passivo, agora começa a desempenhar uma parte ativa. Retendo sobre cartolinas fragmentos do drama que está vivenciando desordenadamente, o indivíduo despotencializa figuras ameaçadoras, conseguindo desidentificar-se de imagens que o aprisionavam.
A História de Beta
Albertina Borges d’Rocha nasceu em 1930. A primeira crise chegou quando tinha 34 anos. Passou por anos de luta, internações e terapia nos ateliers do Museu de Imagens do Inconsciente, onde fundou o jornal O Universo. Com ajuda da escrita, Beta encontrou seu próprio caminho, voltando às atividades cotidianas. Escrever o livro A história de Beta e tornar públicos seus Cadernos íntimos, com relatos sobre as crises e as internações, verificou-se como um ato de coragem e um exemplo sobre como facilitar o processo de autocura.