Nise da Silveira
Doutora Nise da Silveira: mulher, cientista, revolucionária, psiquiatra e alagoana, entre tantas outras coisas que representou para diversas pessoas, durante toda a sua vida (1905-1999), lutou pela urgente necessidade de rever padrões da sociedade. Rebelde assumida, tinha o afeto como força motora de seus estudos e ferramenta de trabalho. Queria substituir doentes dopados e alienados por pessoas integradas, assistidas e tocadas, ou seja, afetadas. Em vez de choques, a “Emoção de Lidar” e a adoção das artes como método de tratamento. E, definitivamente, a substituição do encarceramento pela liberdade.
Sua história, ainda longe de chegar ao fim, é marcada por resistência e luta, sempre amparada na ciência, mas sem permitir que a racionalidade excessiva deixasse de fora o afeto e a escuta. Hoje, celebramos a doutora Nise não como um monumento à psiquiatria brasileira que, naturalmente, ela recusaria, mas como referência de que é possível fazer do mundo um lugar mais humano.
Normalidade e Loucura
O que é loucura? Muitas culturas antigas compreendiam a doença mental como algo de origem divina, sobrenatural, resultado de um dom ou da ira de uma deusa ou um deus. Mais tarde, em algum momento entre os séculos V e III a.C., o médico grego Hipócrates rejeitou esta ideia, explicando que os desequilíbrios seriam naturais do corpo, em particular, vindos do cérebro. Para Hipócrates, o corpo é dotado de um mecanismo que lhe permite restaurar o próprio equilíbrio:
Tuas forças naturais, as que estão dentro de ti, serão as que curarão tuas doenças.
— HIPÓCRATES (460 A.C.)
Nos primeiros hospitais destinados aos “insanos”, na Renascença, a música era adotada por possuir virtudes terapêuticas. No século XII, no Egito, as atividades recreativas como a música e a dança eram prescritas como uma forma de aliviar sintomas – prática comumente utilizada em nossos dias.
Na sociedade ocidental, a loucura ainda é associada a sentimentos depreciativos, como repulsa, medo, instabilidade, perigo e irracionalidade. Essas representações fazem parte de um imaginário social do ser louco, construído e mantido historicamente, que banaliza os sofrimentos psíquicos e inibe qualquer sensibilização, destinando a essas pessoas um lugar de exclusão.
Precursores
a Arte de Lidar
A obra artística é uma criação da fantasia (…). Esta questão de moldes, de medidas, de “cannons”, é o enclausuramento, é a morte por assim dizer do artista criador. A arte para ser genial tem que ser livre.
— OSÓRIO CESAR (1924)
A Experiência de Osório Cesar e Flavio de Carvalho em Juquery
A expressão artística dos alienados (1929) foi o primeiro livro sobre obras de pacientes psiquiátricos no Brasil. Escrito pelo médico paulista Osório Cesar, o livro tem numerosas ilustrações, a maioria de sua própria coleção ou do Hospital do Juquery, incluindo também produções indígenas do acervo do Museu Nacional.
A exemplo de seus colegas europeus, os psiquiatras alemães Hans Prinzhorn e Hermann Simon, além do francês Marcel Réja, Osório Cesar foi também um intelectual híbrido. Natural da Paraíba, era músico violinista, formou-se em odontologia e posteriormente cursou a faculdade de medicina. Foi casado com a pintora Tarsila do Amaral por 3 anos.
Em 1933, Osório Cesar e o artista Flávio de Carvalho organizaram a Semana dos Loucos e das Crianças, exposição que reunia desenhos de crianças de escolas de São Paulo e produções dos internos do Juquery. O objetivo do evento foi levar o caráter psicológico e filosófico da elaboração artística à classe intelectual de São Paulo e questionar o ensino técnico de arte nas escolas e institutos artísticos.
A Arte no Hospital do Engenho de Dentro
Nenhum deles, com mais ou menos talento, mais ou menos atacados na enfermidade, poderia ser o que é ou o que foi, no isolamento. A sociedade do Engenho de Dentro, com toda a precariedade de seus recursos, lhes deu âncora à vida.
— MÁRIO PEDROSA (1980)
Mário Pedrosa, mais importante crítico de arte e colunista do jornal Correio da Manhã de 1944 a 1951, partilhava com Nise da Silveira a vontade de romper com uma tendência da época que lhe parecia opressora, autoritária e esterilizante, só que no campo das artes.
Na década de 1940, o crítico falava, pela primeira vez em contexto nacional, sobre uma arte que se distanciasse das formas rígidas e das convicções acadêmicas, acessível a todos, que tratasse de aspectos humanos, das emoções e sensações. Encaixavam-se, aí, as criações espontâneas e não profissionais de artistas do ateliê do Hospital do Engenho de Dentro, como Adelina Gomes, Emygdio de Barros e Carlos Pertuis, que não dialogavam com a cultura formal (savant) ou com a história da arte e, por isso, ofereciam produções puras e genuínas de seu universo interior.
O ateliê de pintura foi criado por Nise da Silveira e Almir Mavignier, um jovem pintor à época. Além de Mário Pedrosa, era frequentado também por importantes artistas nacionais, como Ivan Serpa e Abraham Palatnik, então um jovem artista em início de carreira. Fonte de grande inspiração e encantamento, os pacientes do Engenho de Dentro e essa cosmologia de mentes brilhantes fertilizaram o movimento neoconcreto nas artes, que emergiu um pouco mais adiante com Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape.
No campo da psiquiatria, foram essas experiências e a produção que ali acontecia que deram vida ao Museu de Imagens do Inconsciente, hoje um dos mais importantes acervos para pesquisa da produção de imagens e seus processos psíquicos.
Adelina Gomes
Adelina era uma moça pobre, filha de camponeses. (…) Era tímida e sem vaidade, obediente aos pais, especialmente apegada e submissa à mãe. Nunca havia namorado até os 18 anos. Nessa idade, apaixonou-se por um homem que não foi aceito por sua mãe. (…) Obedece, afasta-se do homem amado. A condição de mulher oprimida é patente. A autoridade inapelável das decisões familiares impede a normal satisfação dos instintos e a realização de seus projetos de vida afetiva. A situação parecia resolvida sem maiores consequências. Entretanto Adelina foi se tornando cada vez mais retraída, sombria e irritada. Um dia, subitamente, estrangulou a gata da casa, que todos estimavam, inclusive ela própria. Tomada de violenta excitação psico-motora, foi internada em 17 de março de 1937.
— NISE DA SILVEIRA
Eu não Aperto
Outras novidades eram o eletrochoque, o choque de insulina e o de cardiazol. Fui trabalhar numa enfermaria, com um médico inteligente, mas que estava adaptado àquelas inovações. Então me disse:
– A senhora vai aprender novas técnicas de tratamento. Vamos começar pelo eletrochoque.
Paramos diante da cama de um doente que estava ali para tomar eletrochoque. O psiquiatra apertou o botão e o homem entrou em convulsão. Ele então mandou levar aquele paciente para a enfermaria e pediu que trouxessem outro. Quando o novo paciente ficou pronto para a aplicação do choque, o médico me disse:
– Aperte o botão. E eu respondi:
– Não aperto!
— NISE DA SILVEIRA
Tratamento desumano
Na história da sociedade moderna, o enclausuramento é tido como medida condenatória àqueles que representam uma ameaça à ordem imposta: pobres, estrangeiros e doentes, de qualquer idade e gênero, marginalizados e caracterizados como vagabundos, libertinosos, maltrapilhos, alienados, criminosos etc. Esses corpos eram separados das ruas e do convívio social, aglomerados em instituições caritativas, asilares e religiosas, denominadas Hospital Geral.
Foi no século XVIII que o médico francês Philippe Pinel, então diretor do Hospital Geral, identificou a necessidade de separar os “loucos” dos demais para tratamento médico específico. Assim, surgia a classificação de alas hospitalares e, também, da “alienação mental” como categoria médica.
O hospital psiquiátrico criou o psiquiatra, e o psiquiatra, por sua vez, edificou a doença mental.
— FOUCAULT (1978)
No Brasil, a primeira instituição psiquiátrica foi criada por D. Pedro II, por Decreto Imperial, em
1841: o Hospício Pedro II, localizado no bairro da Urca, no Rio de Janeiro.
Afeto
Cartas a Spinoza
Nise escreveu um livro intitulado Cartas a Spinoza, uma coleção de 7 cartas nas quais ela se dirige ao filósofo holandês Baruch Spinoza como seu mestre, discutindo a importância de seu trabalho científico e filosófico como base para o trabalho que desenvolvia no hospital psiquiátrico.
O afeto, para Spinoza, do verbo “afetar”, é aquilo que move, que toca, que mexe com a pessoa, com sua alma. Esses afetos podem ser de qualquer natureza e são únicos em cada um de nós; existem no espaço da nossa subjetividade. O que aprendemos com Nise e Spinoza é que muitas vezes a percepção de nossos afetos é deixada de lado, porque vivemos num mundo que supervaloriza a racionalidade.
Será que tudo que me é ofertado, tudo que consumo, de bens a relações, me afeta positivamente? Ou será que de alguma maneira até os meus afetos estão condicionados e eu me obrigo a sentir? Saber disso demanda tempo e um olhar profundo para dentro de nós mesmos, mas parece um exercício fundamental, uma vez que é a capacidade de afetar e ser afetado que nos torna efetivamente humanos.
Emydgio de Barros
Emygdio de Barros é um dos raros gênios da pintura brasileira. Um gênio não é pior nem melhor do que ninguém. Com respeito a ele, não há termo de comparação: um gênio é uma solidão fulgurante. Ultrapassa as medidas e as categorias. Não é possível defini-lo em função de escolas artísticas, vanguardas, estilos, métier. Com relação a Emygdio, podemos afirmar que raramente alguma obra pictórica foi capaz de nos transmitir a sensação e o deslumbramento que recebemos de seus quadros.
A pintura de Emygdio não reflete a experiência humana no nível da sociedade e da história. A ruptura com o mundo objetivo precipitou-o numa aventura abismal, em que o espírito parece quase perder-se na matéria do corpo, afundar-se no seu magma. E é daí, desse caos primordial, que ele regressa, trazendo à superfície onde habitamos, com suas imagens fosforescentes, os ecos de uma história outra, que é também do homem, mas que só a uns poucos é dado viver.
– FERREIRA GULLAR
– Eu o trouxe porque já faz dias que, quando vou buscar os outros que têm autorização, noto no canto do olho deste doente a vontade de vir também. Diante disso, baixei a cabeça. Saber ler no canto do olho de um esquizofrênico não é para qualquer pessoa, não. Nem psiquiatra, nem psicólogo, nem sábio de qualquer espécie. Em seguida, procurei o psiquiatra do Emygdio para dar uma satisfação da vinda dele para o meu ateliê. E ele me disse:
– Se quiser autorização, eu dou, mas não adianta nada porque ele já está há 23 anos internado, em estado de decadência psicológica muito profunda, e não vai fazer nada que preste.
— NISE DA SILVEIRA